sexta-feira, maio 11, 2007

Não ficam livros por escrever, são emoções que ficam por inventar

“O mais que temos na vida é um conhecimento dela que nos chega demasiado tarde”
António Lobo Antunes

Entre as palavras e o que dizemos há sempre um desvio, é um pouco como o norte magnético e norte geográfico, só que sem a possibilidade de o corrigir. Toda a gente sabe isso e é por o saberem que usam tantas.

Como é público Lobo Antunes está doente, com uma daquelas doenças que mata pessoas.
Claro que como já escrevi aqui todas as mortes são absurdas, que o homem é um bicho feito para viver, do que percebemos um pouco. Para morrer não temos jeito e não percebemos nada. Por mais fábulas, filosofias, ou teorias que se construam, ninguém concebe um universo sem a sua própria presença.

Lobo Antunes não está morto e é provável que não morra, o que é bem. Perguntaram-me se ia escrever uma entrada a desejar-lhe as melhoras mas não é preciso, ele já o fez. O texto em que o fez, prova que o autor que diz que não fala da sua vida na verdade está sempre a falar da sua vida. O que o torna excepcional não é a sua vida, é ter inventado uma coisa, aquilo que parece de fora um estilo, e na verdade uma ferramenta.
Os livros que escreve não nos contam na verdade uma história, o enredo não é secundário, é quase inexistente. Não acredito que um leitor esteja a reconstruir as acções daqueles personagens, se o fizer devia ler livros policiais. Durante a leitura estamos a tornar-nos nas pessoas que nos falam, o que ele faz é pôr-nos a dizer as falas, a representar o que elas sentem. Na verdade nem é isso que ele comunica, o que está lá é o que faz as personagens sentirem algo.


“Algo” é uma palavra um bocado parva, porque é tal como “coiso” uma palavra para nada. Há um problema interior das palavras, que é serem inúteis para comunicar o que nos é pessoal. As palavras funcionam porque referem um objecto descodificado por outro sujeito, isto funciona bem para objectos do mundo real. Mas não funciona para transmitir emoções ou estados anímicos por exemplo.
É obvio que quando digo a palavra “cavalo” não me estou a referir a um cavalo específico mas toda a gente (que conheça o código) vai saber o que digo. Esta simplificação funciona, e com mais meia dúzia de palavras, consigo dar o significado preciso para o que quero dizer que envolva um cavalo. O problema é quando quero dizer outras coisas.


Uma emoção não é um objecto, é uma construção da nossa inteligência perante um evento. Uma situação desenrola-se perante nós e a nossa adesão, o que sentimos perante ela, é afinal a emoção. É essa inteligência sensível de que Fernando Pessoa fala, é essa memória emocional que escapa a clichés cinematográficos que criamos para explicar a nossa própria vida, é esse mundo interior que realmente conta. O problema é que dentro de cada um de nós há um código, uma chave que transportamos para abrir essa memória sensível que é um inferno de passar para fora.
Pense o leitor na palavra medo, ou na palavra calma, ou na palavra alegria. É impossível que não tenha já usado estes conceitos quando se referia a uma emoção sua. Escolha uma.
Agora compare em três ou quatro situações em que tenha estado, por exemplo alegre, se sentia o mesmo sempre. Claro que não, por isso junta mais uma dúzia de palavras, para tornam mais específico, para cercar a palavra. Está satisfeito, realmente já se parece mais com o que queria dizer, mas não basta afinar a palavra, porque ainda não está exactamente o que aconteceu. Para isso também é necessário a circunstância, o que precedeu, o que o momento significava, o que resultou, e tudo o mais. O problema agora é que foi analítico e está convencido que se a outra pessoa conhecer os factos vai produzir a mesma emoção. Está enganado.
É aqui que entra o problema da linguagem, é que a minha emoção não é decorrente dos factos, é produto da minha confrontação, do modo como me inscrevo na acção. Quer o exemplo mais fácil do mundo? Perante um golo num jogo de futebol, é obvio que o evento é unívoco, mas é fácil de perceber que a emoção produzida é diferente conforme a bancada em que se está. Nas outras situações não é tão fácil de perceber mas os resultados são tão díspares como nesses.
Então é impossível comunicar na perfeição o que me ocorre? Claro que sim, o que não quer dizer que não se posso melhorar, e bastante, para lá do simplismo da linguagem analítica.
Então qual é a técnica, o que é preciso fazer?
A única solução é adquirir o quadro mental da outra pessoa. Perceber a pouco e pouco o que significa cada conceito, imaginar, errar, corrigir, perceber que momento evoca cada referência que se faz, porque foi aí que se construiu a rede conceptual, que é a base do nosso raciocino. Isto é exigente, porque obriga a duas coisas muito difíceis, por um lado o abandono do nosso ego, a vontade de entrar na experiência de outra pessoa pelo seu corpo, pela sua inteligência. Esta é a parte da humildade, ver no outro um ser inteiro que é a solução para si mesmo, admitir que a chave está lá e que a minha visão inquina a leitura.
Por outro lado temos de abrir uma brecha. Cada uma das minhas construções racionais é um tijolo na fortaleza em que me defendo. A dificuldade não é entregar o produto da nossa reflexão, é entregar a matéria bruta, o impacto do evento, da emoção. Não é o pormenor ou facto que interessa, é o corte, o que deixou exposto.
Só perante esta disponibilidade é possível perceber, isso torna possível a compreensão, o que torna desnecessário o julgamento.
Claro que este é um jogo difícil que praticamos poucas vezes na vida, desagrada o risco, o ridículo, a insegurança. Mas é uma necessidade básica da nossa vida, quer se dê conta disso ou não. Como em outras necessidades há sucedâneos, como a justiça para a vingança, o desporto para a violência, há uma série de actividade que não podem ser realizadas por pessoas civilizadas.
Pessoas civilizadas não podem sair por aí a queres “entrar” nos sentimentos profundos de perfeitos estranhos. Nem as nossas vidas são suficientemente ricas para nos proporcionarem toda a variedade de emoções que existem.
É aqui que entram os livros de Lobo Antunes. O que ele nos apresenta são personagens que se confrontam uns aos outros, mas por dentro, o que nós observamos é esta espécie de máquina do pensamento. Todas as personagens são cortadas, o que se observa é como se movem em si, o que ele faz dançar perante nós é a matéria de que são feitas as emoções. Claro que para isso é necessário uma técnica de indefinições, repetições de impressões, imprecisões, até que nós consigamos completar com a nossa experiência os eventos por que passam aqueles caracteres. O que temos de fazer é uma espécie de dicionário entre a nossa sensibilidade e a do personagem.
Como exemplo no fim da leitura de “não entres tão depressa nessa noite escura” no dia seguinte tive saudades de Maria Clara (narradora do livro), mas não era bem saudades, só que para explicar precisava de milhares de palavras e mais talento.

E no fim o que se tem são seiscentas páginas. Parece muito? Garanto-vos seiscentas páginas já é o resumo.

4 Comments:

Blogger Marta said...

Muito bom. Bravo, belíssimo texto.
Este merece link.
Está tudo bem contigo. Não sejas parvo, acaba lá o curso, nem que seja por uma questão de papelada. Depois não podes assinar os teus projectos, e isso seria profundamente injusto para uma pessoa como tu.

maio 14, 2007  
Blogger mir said...

:)

maio 22, 2007  
Blogger magarça said...

Fantástico texto. "Não entres tão depressa nessa noite escura" foi o último livro que li de Lobo Antunes. De leitura lenta, envolvente..

junho 30, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Olá. Foi criado um link para este texto no site não oficial do escritor: www.ala.nletras.com (referências)

agosto 11, 2007  

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